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Narração - Vertigem Ferroviária


Vertigem ferroviária

Tinha apenas dois feixes de luz direcionados ao topo de sua cabeça. A claridade concentrada era estourada e desconfortável aos seus olhos – e aos de qualquer um que desse o azar de parar sob aquele único ponto de luz destoante da plataforma de trem. Ao redor, a dois passos à frente ou atrás, a luminosidade era mais amena e agradável. Poderia até dizer acolhedora, se excluíssemos o ambiente caótico que a fluorescência alumiava: idas e vindas de pessoas tão rápidas quanto um cover de Blackbird, dos Beatles, feito por alguma banda de metalcore: vertigem certa.

O retorno para casa apresentava sinais explícitos de falha de concordância entre quaisquer que fossem os astros regentes do céu naquele dia. Os trens estavam atrasados e com a velocidade reduzida. Se alguém se interessasse em pesquisar as posições estelares em algum site de confiabilidade questionável, veria que mercúrio estava oposto à plutão. Alerta vermelho para negatividade e erros tecnológicos. Já estava escrito. Pobre coitada, saiu despreparada.

Enquanto a luz se alastrava por entre as mais recônditas partículas de seus olhos, ela pensava sobre como sairia da prisão mental em que estava detida. Dar dois passos ao lado – e então sair do foco de seu holofote particular –  já significaria o oscilar de sua certeza (hesitante) de pegar o próximo trem. Se saísse de sua posição tensa, seria alguns passos até a escada rolante e mais outros até a segunda linha da estação, que também chegava à sua casa. Mas talvez ela também estivesse travada... A insegurança estava, indubitavelmente, instalada em suas pernas.

O trem já não passava há mais de 20 minutos. Ela piscou forte uma vez. Duas vezes. Três. Talvez suas convicções não aguentassem a quarta. Bom, não aguentaram. C'est fini. Acabou. Ela tomou sua decisão. Um pé deslizou lentamente para o lado. O outro foi mais ligeiro, emparelhou-se ao pioneiro no mesmo décimo de segundo em que uma abelha batia suas asas pela 195ª vez do outro lado da plataforma.  

Seu corpo se guiou pelo caminho contrário que ela havia percorrido mais cedo – quando ainda existia alguma perspectiva de chegar em casa a tempo de comer, quentes, as batatas recheadas que sua mãe estava preparando. Ela subiu as escadas, mas, para se certificar de que estava tomando a decisão certa, olhou para os trilhos do trem uma última vez. De repente, a voz invisível da estação Barra-Funda falou em uma locução abafada: “a situação já está sendo normalizada”. O trem passou.
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